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“Tio, me dá um dinheiro?”

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teste-internoSinal vermelho. No semáforo de uma cidade qualquer, uma criança aproxima-se de um veículo e com um olhar lânguido faz o pedido reproduzido incontáveis vezes ao dia: “Tio, me dá um dinheiro?”. Rapidamente o motorista busca algumas moedas no carro e entrega, evitando olhar nos olhos do pequeno pedinte. Sinal verde. O condutor do veículo segue o seu caminho – com a alma um tanto amaciada diante de seu gesto de caridade.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano dizia não acreditar em caridade, e sim em solidariedade. Ele alegava que caridade é vertical demais, vai de cima para baixo. Já a solidariedade não, esta respeita a outra pessoa e, sobretudo, se aprende com o outro. Concordo com Galeano. Sejamos francos: não há solidariedade na esmola, tampouco caridade.

Não há sequer nobreza na esmola, pois alguém é humilhado por este gesto. Quem dá esmola o faz por sentir-se constrangido de alguma maneira. Constrangido consigo mesmo, talvez. E a suposta “pena” da situação de penúria do outro é, na verdade, compaixão por si próprio. Sim, porque no fundo sentimos culpa pelo outro estar vivendo sub-humanamente e nós não. Afinal, a esmola que damos diz muito sobre nós.

Esmola é uma forma de violência social e culturalmente instituída. Uma violência disfarçada de caridade, de generosidade, de piedade. A esmola pode aliviar situações de extrema necessidade em dado momento, mas não contribui para transformar a condição de miserabilidade dos pedintes. E neste círculo vicioso e assustadoramente confortável de quem pede e de quem dá esmolas, deixamos de fazer o que realmente é mais prudente: admitir o lado indigno da esmola, o qual descaracteriza seres hum anos, transformando-os em cidadãos de terceira categoria e acaçapando o direito destes de buscarem outra realidade.

É a esmola que é indigna e desonrosa para o ser humano, não ser pobre ou miserável economicamente. A pobreza não deve ser estigma, não é uma desonra. Qualquer um de nós está sujeito a intempéries da vida. Podemos dormir seguros e confortáveis em nosso lar um dia e no outro seguinte não termos sequer um travesseiro para deitar nossas consciências.

A atitude de dar esmolas faz com que crianças e adolescentes se prendam cada vez mais às ruas, ficando expostos a todos os riscos. Além disso, muitas crianças são exploradas por adultos a pedir esmolas. Soma-se a isso o fato de que são altas as chances de crianças que pedem esmolas se tornarem adultos mendicantes ou criminosos. Buscando a raiz do problema: é a esmola que mantém pessoas na condição de rua.

De acordo com o antropólogo Roberto DaMatta, a prática de dar esmolas é um legado do catolicismo, mas acabou introjetada no Brasil como uma política de Estado. Na visão de DaMatta, em vez de investir em educação de excelência como fizeram países europeus no século 17, nosso país manteve a tradição colonial e preferiu as soluções anódinas e programas assistencialistas para enfrentar suas enfermidades sociais. E essa péssima reminiscência também terminou por contaminar a sociedade.

É dever do Estado garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, não degradante, tal qual assevera o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição brasileira. Nossas crianças não querem esmolas, querem dignidade, assim como os adultos. E é nosso dever moral não contribuir ainda mais para essa humilhante condição a que seres humanos são submetidos nas ruas.

É preciso parar de pedir esmolas e exigir do poder público o seu dever. É preciso parar de dar esmolas e exigir do poder público o seu dever. Em 1953, Luiz Gonzaga gravou o memorável baião “Vozes do Sertão”, no qual definiu com extrema exatidão o conceito de cidadania plena, para além do conformismo passivo, do assistencialismo institucional e da caridade alheia: “mas doutor, uma esmola a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão / Dê serviço a nosso povo / Dê comida a preço bom / Livre assim nós da esmola…”

Cathy Rodrigues
Jornalista
DRT-BA 4317
cathyannesr@hotmail.com

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