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Maria Bethânia celebra com show e livro-DVD os 50 anos de uma carreira sem concessões

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Leonardo Lichote | O Globo

Cantora diz que seu principal legado é levar a veia teatral à música

Maria Bethânia apresentava sua interpretação de “Carcará” em sua estreia no espetáculo Opinião — no qual substituía Nara Leão — e, naquele histórico 13 de fevereiro de 1965, plantava as bases da carreira que, agora, tem seus 50 anos anos celebrados no show “Abraçar e agradecer”, no Rio (a partir de sábado) e em São Paulo (em março). O marco, porém, se afirma menos pelo fato de a música ter se tornado um sucesso enorme na voz da cantora e mais pela forma como a artista reagiu a isso. Aos 17 anos, ela já sabia muito do que queria.

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— Na hora em que cantei “Carcará”, todo mundo tomou aquilo pra si — lembra Bethânia, hoje com 68 anos. — “Carcará” pertencia ao Brasil, e ai de mim se não fizesse o que o Brasil queria. Por isso fui-me embora logo. Porque se fizesse um show de uma hora e cantasse uma hora de “Carcará” estava ótimo. Se eu cantasse 58 minutos de “Carcará” e dois minutos de “Olhos nos olhos”, zero! Não podia trocar de roupa, não podia soltar meu cabelo. “É o tesouro do Brasil!” Não, alto lá! Posso até ser, fico honrada, mas existo. Não sou só isso. Tanto que fui e voltei com vestido longo, dez perucas, para nem lembrarem. E uma condição: não cantar “Carcará”. Depois cantei de novo, foi só um tempinho para entenderem, um “larga do meu pé, vai chatear outro”.

A cantora que surgia ali, como ela descreve, apontava para o lado oposto ao da secura de “Carcará”:

— Voltei cantora da noite, meio cafona, com música que ninguém cantava, de um repertório romântico mais brega, de que eu sempre gostei. Não era nem Tropicália nem bossa nova. A Tropicália era outro uniforme, mas tinha o mesmo rigor da bossa. Tinha a roupa, o comportamento. Ambos lindíssimos, e eu passeei bem nos dois. Mas do meu jeitinho, sem me aprisionar.

EM BUSCA DE “CANÇÕES DE AMOR SIMPLES”

Mesmo referindo-se a seus primeiros passos, as falas de Bethânia carregam marcas que definem toda a sua trajetória. A liberdade, o olhar do Brasil interiorano (bastante explorado a partir de “Brasileirinho”, de 2003), o gosto pela canção popular. Marcas que seguem presentes em “Abraçar e agradecer”, espetáculo que ela define como repleto de silêncios (“Tenho trabalhado em coisas meio lentas, para mim tem sido tão importante isso, quando consigo um lugar que não está na balbúrdia geral digo: ‘Ah, Deus’”) e que segue nas frentes de brasilidade e romantismo que atravessam a carreira.

— Quero tocar o coração das pessoas. Nasci para fazer isso. Seja uma canção de amor, seja uma cantiga a favor dos índios, gritando que o Brasil está bonito ou feio — define ela, detalhando como pede músicas para os amigos. — Para Chico César, eu disse: “Você pode fazer uma canção de amor simples? Porque agora as canções de amor dos meus melhores compositores são tão difíceis, tenho que olhar dicionário… Meu amor não é assim, é rebentão. Dá pra ter uma dessas assim?”. Sinto falta disso. Esse calor que a música brasileira tem demais. É lindo ser uma intérprete que joga o veneninho e deixa a pessoa se virar.

Bethânia explica que, quando canta uma dessas “canções de amor simples”, ela o faz numa abordagem que difere da dos tropicalistas.

— Ali era político — avalia. — Para mim, não, passa por aqui (aponta para o peito). Ah, meu filho, sou uma bobona. A Gaby Amarantos, por exemplo, tem um jeito de mostrar uma canção tão pessoal que é verdade, me passa lindo. Gosto de Zezé di Camargo e Luciano, já gravei. Fiz uma brincadeira com Bruno & Marrone, cantei “do jeito que você me olha vai dar namoro”. Tem uma deles que adoro: “Quer, quer, quer, quer casar comigo?” (canta). Acho lindo perguntar assim numa canção. Quando fazem de verdade me convencem. Mas, quando vejo que está programado para convencer, adeus Guacira. E é o que tem mais, né? É mais difícil fazer o real.

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A popularidade que importa a Bethânia, ela explica, é a de se comunicar com as pessoas. Ela se orgulha de ter conduzido sua carreira resistindo a pressões de gravadoras na busca exclusiva por altas vendagens.

— Só faço se quiser e como quiser. Muito disco meu ficou na gaveta por isso, foi lançado de qualquer jeito, para ninguém prestar atenção. “Ciclo” (1983), meu melhor disco, é um deles. A gravadora queria que eu seguisse um rumo que deu certo, vendeu, de “Álibi”. Mas disse: “Não tem que fazer assim, não tem repertório para isso, quero fazer outra coisa”. Porque no fundo não é o mais importante para mim o estrondoso sucesso. Tanto que minha vida se mantém numa área luminosa, mas serena. Não é nenhuma explosão. Teve “Álibi” em 1978, que vendeu um milhão de cópias, a primeira mulher a fazer isso. Mas não quis seguir porque aí começa a ficar sem assinatura. “Sei vender bem”. Ótimo, então vá vender sabonete. Artista, não.

No novo show, além da “canção de amor simples” de Chico César, Bethânia mostra outras músicas feitas especialmente para a celebração — de autores veteranos como Paulo César Pinheiro e Dori Caymmi. E pelo menos uma jovem compositora — Bethânia sempre lançou luz sobre a obra de compositores mais jovens, como Arnaldo Antunes e Vanessa da Mata.

— Tem uma paraibana que reside na Bahia, Flavia Wenceslau, que Chico César me apresentou e me comoveu muito — conta ela, que adianta mais do repertório. — Escolhi Pena Branca & Xavantinho, Chico Lobo, muita coisa inédita em minha voz. E o disco “Meus quintais” (o mais recente de estúdio) veio mais forte do que eu imaginava para o show.

Marisa Monte quase entrou:

— Marisa é danada, ótima cantora e compositora. Queria cantar uma coisa dela nesse show, mas não vai dar… Canto ela em casa — revela Bethânia, sem dizer o quê. — Não conto. É privado, para namorar.

Com produção musical de Guto Graça Mello e direção e cenografia de Bia Lessa, “Abraçar e agradecer” intercala as músicas com textos de Waly Salomão, Clarice Lispector e Carmem L. Oliveira (autora de “Flores raras e banalíssimas”). Um viés interpretativo que ela valoriza há décadas em seus shows, desde muito nova.

— Eu fazia teatro. Eu lia muito bem, sempre que tinha coisa para ler me chamavam. Eu subia um degrauzinho que fosse e já estava na ribalta — lembra Bethânia, ressaltando que cultiva uma outra face. — Sou interiorana, travadinha. Mas esses dois lados não brigam. Gosto e preciso das duas coisas. Tive que amadurecer da noite para o dia quando cheguei ao Rio. Uma menina de 17 anos naquela época era uma menina, não uma quase mulher como é hoje. Cheguei e de cara me disseram: “Você vai ficar em tal hotel”. “Hotel não é lugar de moça.” A mulher de Glauber, Rosinha, resolveu: “Ela pode ficar lá em casa”. E isso para eles foi esquisitíssimo. Dei um pouco de trabalho.

“HERANÇA DO MEU ESTILÃO”

Depois de um 2014 marcado pelo lançamento de “Meus quintais” e do documentário “(O vento lá fora)”, de Marcio Debellian, com leituras de poemas de Fernando Pessoa ao lado da professora Cleonice Berardinelli, Bethânia comemorará os 50 anos de carreira em diversas frentes. Além do show, será a grande homenageada com o Prêmio da Música Brasileira, no dia 10 de junho, no Teatro Municipal, e lançará o livro-DVD da leitura “Bethânia e as palavras”, com design de Gringo Cardia. Celebrações de uma artista que, de “Opinião” a “Abraçar e agradecer”, reconhece ter deixado uma herança clara:

— Eu me tornei uma cantora que abriu uma coisa teatral para a música. E foi o Fauzi (Arap, diretor) que fez, mais do que (Augusto) Boal. Apesar do “Opinião” (de Boal) ser teatral, e Boal ter feito para mim o “Tempo de guerra”, foi o Fauzi que vislumbrou em mim que eu ia adorar me expressar com teatro. Essa é única linha que eu deixo de herança do meu estilão.