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Tom Zé lança ‘Tribunal do Feicebuqui’ em vinil

Publicado

em

Agência Estado

Músico está perto de completar 80 anos (Divulgação)

Músico está perto de completar 80 anos (Divulgação)

Tom Zé, em 2013, mostrou mais uma vez sua relevância como artista e criador inquieto: lançou um compacto duplo, em vinil, para debater com seu público. Prensado na República Checa, o disquinho veio à luz com tiragem de 500 exemplares, numerados. Nele, estão reunidas cinco das canções do EP, lançadas meses antes, no site do artista para download gratuito. O nome do EP virtual, como do compacto de vinil, é o sugestivo Tribunal do Feicebuqui.

Em relação ao EP, o compacto ganha a bela capa de Mallu Magalhães – com uma imagem do artista em pose de presidiário ou Cristo na cruz – e o encarte com as letras das canções, além do texto Ordem no Tribunal!, no qual se relata, em linguagem jurídica, a polêmica que deu origem ao trabalho. A versão digital trazia os créditos num arquivo PDF; o compacto organiza-os sob a direção de arte de Cristina Naumovs.

As origens do disquinho são conhecidas. Em fevereiro, Tom Zé emprestou sua voz para a locução de um comercial de refrigerante, “A copa de todo mundo”. A propaganda trazia as costumeiras imagens festivas do Brasil, emolduradas por um discurso inclusivo que associava o País de todo o mundo ao esporte de todo mundo e à bebida de todo mundo.

A gritaria contra o artista foi notável: ele foi julgado e condenado nas redes sociais como “vendido”. A premissa é que o “artista autêntico” não pode fazer propaganda, ainda mais do refrigerante gringo, ícone do capitalismo.

O fato é que Tom Zé – perto de completar 80 anos de idade, 45 anos desde o lançamento do primeiro disco, alguns deles amargando um esquecimento que lhe permitiu ser jardineiro do próprio condomínio – acusou o golpe. E, ato seguido, tomou para si a acusação da qual foi alvo: doou o cachê da propaganda para a Banda de Irará e colocou-se como réu no Tribunal.

Mas também assumiu, enfim, o papel que alguns artistas se outorgam em tempos difíceis: expressou-se de maneira pública e singular sobre os acontecimentos de seu entorno. Além de lançar o EP em seu site – que agora ressurge em disco – nas semanas seguintes, compôs e publicou ainda outras canções para audição gratuita, dando continuidade a seu projeto da década passada, Imprensa Cantada (2003). A música mais representativa é, sem dúvida, Povo Novo, que canta e reflete sobre as manifestações de rua. Esta, porém, não figura no compacto, que centra forças na borbulhante polêmica do comercial de refrigerante.

De modo sagaz, o artista se imola e coisifica ao se associar radicalmente, nas letras, ao universo da propaganda. Logo na música de abertura, canta: “Vendido, vendido, vendido / a preço de banana / Já não olha mais para o samba / tá estudando propaganda”, fazendo referência a seus discos Estudando o Samba (1975) e Estudando o Pagode (2005). Já em Zé a Zero embaralha os fonemas para dizer: “Aqui copa coca acolá / Fazendo propaganda do Tom Zé”. Fica a pergunta, desafiadora, também da faixa de abertura, bradada pelo rapper Emicida: “Que é que custava morrer de fome só para fazer música?”. Bastante rara tal lucidez no mundo em que a canção deixou de ser uma commodity em alta no mercado.

No lado B, mais dois momentos singulares. O primeiro deles, a marca maior de uma sociedade que insiste em não ser laica: numa quase marchinha, o poeta vai supostamente contrito pedir perdão ao papa para “o tipo de pecado que acabaram de inventar”. E apela: “No Feicebuqui da Santa Sé / Papa Francisco perdoa Tom Zé”.

O disco é encerrado com um jingle do guaraná Taí, que Tom Zé compôs no tempo em que trabalhou na DPZ, há 40 anos. Pois a canção, que legitima o passado de iniquidades do artista, ressurge metamorfoseada na versão de The Hips of Tradition (1992) com o acréscimo de uma beat-box ao fundo, aliada a intervenções tangueiras de um bandônion.

Ao final da audição se pode perceber como o artista devorou o refrigerante e os críticos. A resposta musical e pública à polêmica dá a dimensão de Tom Zé como artista que se afeta pelo que também publicamente se diz sobre seus gestos. Mas também como o artista que pode tomar a palavra quando quer.

* Wilson Alves-Bezerra é coordenador de cultura da Ufscar e autor de Da Clínica Do Desejo a Sua Escrita (Mercado de Letras/Fapesp)

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