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Para Westeros e além

Coluna de Luara Batalha, Engenheira civil, mestre em engenharia de estruturas, atuante em ensino e pesquisa, dedicada às expressões artísticas, leitora voraz, apaixonada por letras e está trabalhando seu primeiro romance

Publicado

em

Luara Batalha

Muitas vezes se fala que a ficção imita a vida, mas sempre fiquei na dúvida se funciona nesta ordem ou se ao contrário. De qualquer forma, se isso de fato for verdade, ocasionalmente desejamos que não seja. No mundo da fantasia, “presenciamos” barbárie e perdoamos os personagens, exatamente por serem personagens. Ao acompanhar atrocidades, na chamada vida real, é muito difícil relevar, já que todos as lições de certo e errado acordam e passamos a perceber quão deturpados são determinados comportamentos.

Quando se trata de situações tão bizarras a ponto de torcermos para que sejam irreais, muitos preferem não ler sobre o tema. Uma vez minha mãe me disse que gostava de biografias e dei a ela de aniversário o livro Libertada, que nada mais é do que o relato de Michelle Knight¹ sobre seu sequestro e cativeiro. Todos ouviram sobre a história das garotas desaparecidas por 10 anos, mas como seria ler a narrativa sobre os eventos? Minha mãe finalizou a leitura de forma sofrida, exatamente por tudo ter ocorrido no nosso mundo e no agora, e ser fácil se imaginar naquela posição. Ela pediu para que as próximas obras fossem sobre pessoas que viveram em outros tempos porque é difícil digerir crueldade.

Alguns casos se apresentam de mãos dadas com a incredulidade e um exemplo bem atual é o da deputada federal Flordelis. Quando soube da história, achei que tinha entendido errado e que somente Manoel Carlos² poderia ter inventado aquela sequência de fatos: tentativas de envenenamento, assassinato, ex-mãe/ex-sogra/atual esposa (bem Laços de Família). Mas, como a protagonista não se chama Helena, e, como disse, a crueldade é difícil de digerir, tentei criar um sentido para tudo isso. Claro, não encontrei. Não há uma única linha de raciocínio que justifique o ocorrido.

Como enredos com eventos bizarros e próximos a minha realidade nunca foram meus preferidos, os reais ou ficcionais, passei, então, a pensar novamente sobre a imitação da vida. Poderia aqui listar diversas obras biográficas que descrevem cenários estapafúrdios e relações angustiantes, mas prefiro me ater à fantasia, ao mundo em que os dragões existem, como o criado por George R. R. Martin, autor das Crônicas de Fogo e Gelo, cujo primeiro livro é Guerra dos Tronos (Game of Thrones – GOT). Escolho, assim, lidar com os desvios éticos dos personagens.

Em Westeros, onde se passa a história de GOT, o irmão vende a irmã, que descobre o amor ao se envolver com o inimigo, que, a propósito, acaba sendo seu sobrinho (tudo bem, essa parte não foi escrita por ele). Vemos também relações pouco convencionais como uma mulher que casa com um homem e depois com seu cunhado (quase uma criança), filhos que assassinam os pais e irmãos que formam um casal. Sim, a narrativa desconsidera todas as faces da moralidade. Ao final, não sabemos mais diferenciar o mocinho do vilão, mas temos consciência de que o saudável seria não se envolver com nenhum deles.

Um outro enredo místico que traz relações questionáveis é a série literária Brumas de Avalon, escrita por Marion Zimmer Bradley. Provavelmente, para aqueles que já leram essa obra, o que marcou foi o triângulo amoroso formado por Rei Arthur, Guinevere e Lancelot e o fato de que Morgana era uma feiticeira. Por sinal, o estigma de bruxa persegue até hoje este nome, que muitos acham impróprio para crianças ou com energia negativa. O interessante é que quase ninguém lembra (e aqui vem um spoiler) que Morgana teve um filho do seu próprio irmão, o rei Arthur, gerado durante um ritual. Diante da crise causada pela descoberta desse incesto, o que poderia fazer o fruto dessa concepção? Como todo personagem perturbado, tentar matar o pai.

Percebam que, mesmo se tratando de fantasia, esses mundos trazem personagens tão cruéis quanto algumas pessoas que andam pela nossa rua. Observem que em nenhuma das duas histórias o foco está nas relações desajustadas, já que a trama intrigante e bem construída faz com esses fatos sejam secundários e esquecíveis. Se numa reviravolta à la Mundo de Sofia³ todos esses personagens fossem transportados para aqui, nossa percepção mudaria e toda a névoa da ilusão literária seria desfeita. Veríamos a podridão de cada um deles e não seríamos tão condescendentes.

Para não acabar com a graça do escapismo literário, concluo que ainda não decidi se a vida imita a arte, mas, com certeza, a deputada Flordelis gostaria de ser, nesse momento, uma moradora de Westeros.

[1] Garota sequestrada aos 21 anos e mantida em cativeiro por 10 anos pelo pai de uma colega. Durante esse período sofreu abusos físicos e psicológicos e abortos. Para mais: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/abortos-espancamentos-e-estupros-os-insolitos-sequestros-de-cleveland.phtml
[2] Autor de novelas globais, como Laços de Família, cujas protagonistas se chamam Helena.
[3] Escrito por Jostein Gaarder

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2 Comentários

2 Comments

  1. Jelaida

    6 de outubro de 2020 às 08:08

    Adorei o final! E acho q também não conseguiria ler o livro sobre o cativeiro de 10 anos da moça 🙁

  2. Bruna

    6 de outubro de 2020 às 08:21

    Infelizmente, em alguns casos, a verdade consegue ser mais cruel que a ficção! E saber que algumas obras de ficção foram inspiradas em eventos reais (as próprias Crônicas de Gelo e Fogo, O Conto da Aia…) acho que acaba piorando a situação hahaha

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