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Virando Páginas

Histórias que se cruzam nas páginas

Coluna de Luara Batalha, engenheira civil, mestre em engenharia de estruturas, atuante em ensino e pesquisa, dedicada às expressões artísticas, leitora voraz, apaixonada pelas letras, teve seu conto “Invasão de território” publicado na antologia Soteropolitanos e atualmente trabalha no seu primeiro romance

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Luara Batalha

Como escritora, muitas vezes me baseio em situações vividas por mim para criar personagens e histórias. Outras tantas me inspiro em frases aleatórias, em casos narrados ou cenas de filmes. Passo todo o tempo criando conexões literárias, tendo ideais, fazendo triagem dos possíveis enredos até escolher alguns e tentar desenvolvê-los.

Eugenia Skeeter Phelan, protagonista do livro A resposta¹ , de Kathryn Stockett, também observa as coisas ao seu redor e pensa sobre o que pode escrever. Ao terminar a faculdade, volta para sua cidade e se torna colunista de um jornal local. Após presenciar atitudes desagradáveis de mulheres brancas com as suas empregadas domésticas negras, decide contar a histórias destas mulheres, que, muitas vezes, “criam filhos brancos” e não podem dar atenção aos seus próprios.

Dividido em capítulos narrados por diferentes empregadas da região, o livro mostra os pormenores das relações entre as mulheres negras e brancas dentro “das casas de família” do Mississipi na década de 60. O apartheid já tinha legalmente acabado, mas as práticas ainda permaneciam e em diversas residências as empregadas ainda deviam entrar pelos fundos. Além de serem responsáveis pela limpeza, organização e refeições, cuidavam das crianças e tinham seu consumo de papel higiênico controlado. Insegurança e abuso doméstico também eram impostos a elas que, devido a outros fatores da época, como falta de acesso educação básica e baixa perspectiva de crescimento profissional, aceitavam as condições a que eram submetidas. E, sim, a história realmente se passa na década de 60.
Sempre me perguntei o que as empregadas domésticas pensam sobre o comportamento dos seus contratantes hoje, se há algum tipo de frustração causada pelo caminho que seguiram ou até se possuem sonhos que almejam alcançar algum dia. Esse seria um bom tema para um texto, mas já aprendi que não importa o quanto eu queira contar uma história, meu cérebro tem vida e segue o caminho que quer. E, sobre o tema, nasceu o seguinte:

Ao chegar em casa, Mônica se deparou com Eliete pronta para ir embora, já com as malas nas mãos.

  • O que está acontecendo, Eliete? Para que essas malas?
  • Estou indo embora.
  • Como assim? Depois de tantos anos, vai me abandonar? Como você tem coragem?
  • Não me diga que não sabia que esse dia chegaria, não com a forma que eu era tratada nessa casa.
  • Não acredito que depois de vinte anos de relação você tem coragem de dizer que foi maltratada, Eliete! – gritou Mônica.
  • Claro! Nunca fui respeitada, sempre fui tratada como uma inferior, como lixo. Passar bem! – e se dirigiu à porta.

Antes de conseguir sair, foi impedida por uma Mônica chorosa e descontrolada.

  • Pense nas crianças!
  • São todos adultos! – corrigiu.
  • Você é da família!
  • Família? Saia com vocês? Acompanhei alguma viagem? Não! – disse, finalmente, abrindo a porta.
  • Te verei de novo algum dia?
  • Claro, Dona Mônica, no tribunal! Pode contratar um advogado porque vou atrás de todas as minhas horas extras.

Assim como Skeeter, muitos cresceram com uma empregada doméstica negra de confiança em casa e até hoje verbalizam que ela era quase da família, mas são poucos os que efetivamente agem como se isso fosse verdade (e nisso me incluo). “Os laços familiares” geralmente são esquecidos quando ela é demitida ou se aposenta, restando apenas as lembranças da sua presença.

Provavelmente as novas gerações não compreenderão os fatos trazidos aqui, já que, após a Lei Complementar 150/2015², regras foram estabelecidas para a execução de trabalhos domésticos, que não condizem com as práticas anteriores. Muitos dos apartamentos mais novos não possuem mais o “quarto de empregada” e é cada vez mais raro vermos empregadas domésticas que não moram em suas próprias casas. Com certeza nem todos apoiam essas mudanças, afinal, manter o conforto residencial de décadas atrás custa bem mais. Mas me pergunto: isso de fato é ruim?

1 Sua adaptação para os cinemas ocorreu em 2011 e seu título foi traduzido para Histórias Cruzadas. Eugenia Skeeter Phelan foi interpretada por Emma Stone.

2 Lei que regulamenta os direitos dos trabalhadores domésticos.

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