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Carnaval por contos

Aquele mar de pessoas empurrando e gritando “nosso amor na última astronave”

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Carnaval por contos

Luara Batalha

2020 resolveu nos desafiar de todas as formas e, como encomenda para 2021, temos o adiamento do carnaval. A confirmação de que um dos maiores carnavais do mundo, o de Salvador, não ocorrerá em fevereiro de 2021 devido a COVID-19 não foi uma surpresa, mas isso não impediu foliões tristes de se lamuriar pelo cyber mundo. Para eles, e para todas as pessoas que gostariam de viver – ou reviver – a experiência extenuante de curtir os seis dias de festa na capital baiana, deixo este conto despretensioso.

Danilo estava contente. Era seu primeiro carnaval solteiro depois de terminar uma relação de dez anos. Por incrível que pareça, apesar de ter passado uma década comprometido, achava que não poderia estar em situação melhor. Com trinta anos, casa própria e carro do ano, possuía um porte de dar inveja. O toque especial eram os olhos verdes herdados do avô alemão. Ninguém resistia ao seu olhar.

Carnaval por contos
Carnaval por contos: Av. Clériston Andrade, principal avenida do Carnaval de Barreiras (oeste da Bahia) | Imagem: Carnal 2020 em Barreiras

Tentando recuperar os anos de monogamia, decidiu, para aquele carnaval, sair no bloco que representava toda a fama profana da festa em solo baiano: Os Filhos de Gandhi. Claro que ele não desfilaria com os demais colegas de bloco, este nunca foi seu objetivo ao adquirir o abadá. O que Danilo realmente queria era a fantasia branca e o turbante – principalmente o turbante – e todos os colares de contas que conseguisse produzir para poder distribuir ao longo do caminho em troca de beijos.

Na metade do circuito, pelos seus cálculos, já tinha trocado dezessete colares. Um bom número, ainda mais se considerasse que estava na companhia de um novinho de abdômen trincado – que óbvio tirou a camisa para chamar atenção – e de seu xará, que, apesar de não se destacar pelos atributos físicos, dominava a arte de paquerar como ninguém.

Carnaval por contos
Carnaval por contos: Centro histórico de Barreiras (Oeste da Bahia) | Imagem: Carnaval Cultural 2020

Saulo Fernandes já cantava Minha Pequena Eva pela quarta vez no circuito quando o trio elétrico começou a fazer o retorno na Praça Castro Alves. Danilo não era fã do cantor, mas acompanhava o trio sem corda por ser um dos preferidos das mulheres. Seu empenho na distribuição dos colares era tamanho que estava ali num dia que os Filhos de Gandhi não desfilaria, mas como ninguém estava prestando atenção na programação dos blocos, optou em correr o risco de ser taxado de ridículo somente para se destacar com a roupa branca no meio da multidão.

O cheiro de suor misturado com cerveja barata já estava tão impregnado no ambiente que não lhe era mais desagradável, só representava que estava na hora, talvez, de encontrar uma conquista para seguir o resto do caminho acompanhado. O que realmente lhe incomodava no carnaval era a água que as Muquiranas jogavam nos passantes. Nem aquele mar de pessoas empurrando e gritando “nosso amor na última astronave” era tão desconfortável quanto aqueles respingos. Como bom filho de Gandhi, que tem como princípio propagar a paz, Danilo aproveitava esses momentos para se mostrar compreensível com a chateação das mulheres atingidas pelos esguichos de água, estando sempre disposto a secá-las com a sua própria fantasia. A única parte da sua vestimenta que não poderia ser usada para este fim era o turbante. Ainda assim, sempre ganhava um beijo pelo seu cavalheirismo.

Com o início de um afro reggae que convidava a dançar colado, Danilo, mesmo sendo extremamente crítico em relação a limpeza e asseio, aproveitou a leve mudança na atmosfera para se aproximar da última vítima das Muquiranas.

– Que chato isso, né? – disse oferecendo sua fantasia para enxugá-la – Me deixe te ajudar.

– Ah… Obrigada! – respondeu a garota queimada de sol, nitidamente de fora da cidade, toda pintada com os símbolos da Timbalada.

– Está gostando do carnaval? – quis saber enquanto a puxava para perto.

– Sim, uma experiência única! Já tinha visto fotos e vídeos, mas não imaginava a força dessa energia. – ela sorriu enquanto olhava hipnotizada para a fantasia, o turbante e os olhos verdes de Danilo.

– Então, você sabe – sussurrou o rapaz conduzindo a morena a entrar no ritmo da música – que a experiência não é completa até se beijar um Gandhi, não é?

Ela sorriu novamente. Danilo já tinha usado aquela frase algumas vezes naquele dia e sabia o que aquela resposta significava. Puxou a jovem para perto de si e a beijou. Embalado pela voz de Saulo e se mexendo na batida da música, se perdeu naquele beijo a ponto de esquecer que deveria estar sempre atento a uma peça específica da sua indumentária. Foi só ao ouvir o comentário de outra mulher que se deu conta de que o turbante havia caído.

– Amiga, acaba esse beijo com esse Gandhi agora! Aí é SOS, só os olhos salvam. Olha o tamanho dessa cabeça!

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Carnaval por contos: Carnaval Cultural na esquina do Mariana em Barreiras (Oeste da Bahia) | Imagem: Carnaval Cultural 2020

A surpresa paralisou Danilo a ponto de ele não fazer nada para impedir que sua última conquista escapasse gargalhando. Sua cabeça de fato era um pouco maior que o normal, mas o que chamava mesmo a atenção era a sua tentativa de disfarçar a careca utilizando o cabelo que nascia no fundo da cabeça. Aquela era a sua maior insegurança e ele só saia de casa usando algo que camuflasse isso, como uma touca – mesmo que no calor nordestino não fizesse sentido, dizia que era a última moda na Europa. Ainda tentando esconder o que ninguém realmente olhava no meio daquela festa, negociou com um ambulante a compra de um novo turbante, só que do carnaval passado.

Danilo não estava mais contente.

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