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A parábola da preguiça baiana

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01Nos tempos da escravidão, os negros eram depreciados pela elite branca. Descritos como desorganizados, sujos, analfabetos, o negro passou a ser chamado também de preguiçoso. Símbolo do preconceito, a Ladeira da Preguiça, em Salvador, ganhou este nome por ter sido a via de acesso de mercadorias vindas do porto para a cidade, levadas em carretões puxados a boi e empurrados por escravos. Do alto de seus casarões, ao verem os servos tomando fôlego para subir o local extremamente íngreme com sacos de muitos e muitos quilos nas costas, a fina flor da sociedade gritava: “Sobe, preguiça! sobe, preguiça!”.

O tempo passou e em 1960, o governo da Bahia optou por explorar o mito cultural da preguiça baiana. Nesta época, o turismo tinha como slogan a Bahia paradisíaca, para onde todos aqueles que não querem trabalhar deveriam ir, para onde os estressados deveriam ir. E até os dias atuais, a indústria do turismo segue perpetuando a máxima “quer descansar, vá à Bahia”.

Aqui a festa nunca termina e ninguém se preocupa com o relógio/tempo. Assim, a indústria do turismo aprendeu a tirar proveito do mito da preguiça baiano, lhe conferindo apelo tentador, mas pouco levando em conta que enquanto alguns dançam, outros cantam, enquanto muitos bronzeiam-se à beira mar, outros servem bebidas e comidas, com uma estranha servidão, sob o sol imperdoável da Bahia.

Portanto, é uma ilusão pensar que por estas paragens paradisíacas ninguém gosta de trabalhar – até mesmo porque, para criar essa ilusão turística poderosa, capaz de atrair milhares de pessoas ao Estado, milhões de baianos trabalham duro.

Quando uma pessoa afirma que baiano é preguiçoso, mesmo acreditando tal ato ser inocente (e nunca é!), ela está reproduzindo esse perfil intencional e historicamente construído, reforçado pela mídia e por aqueles que nada conhecem da Bahia e de sua gente. Tal estereótipo jamais poderia ser benigno, é um conceito permeado de racismo, uma visão atrasada e rasa, engendrado pela elite branca para depreciar a esmagadora população negra da Bahia.

Homens, mulheres e crianças, açoitados pela escravidão, os negros eram os pés, braços e mãos da economia durante o Brasil Colônia. Chamado de “fôlego vivo”, a única função do negro escravo era tão somente trabalhar. Logo, do ponto de vista histórico e cultural, essa mítica aversão ao trabalho atribuída ao baiano não tem fundamento real algum.

Quando um paulista ou carioca chama um baiano de preguiçoso, ou ainda, quando trata indistintamente nordestinos de baiano, estão valendo-se da depreciação e da desqualificação como mecanismos de exclusão, tal qual a elite branca fez com os negros escravos e ex-escravos. Segundo a tese de doutorado da antropóloga Elisete Zanlorenzi (USP), intitulada “O mito da preguiça baiana”, de 1998, uma empresa com sede no Pólo Petroquímico de Camaçari, a 41 quilômetros da capital baiana, registrou menos faltas de funcionários durante o Carnaval de 1994 do que sua filial de São Paulo.

Outro dado curioso da pesquisa foi que, no final dos anos 1980, entre as pessoas ocupadas na Região Metropolitana de Salvador, 50,4% trabalhavam mais de 48 horas semanais e 35,8% de 38 a 46 horas por semana. Entre as seis maiores regiões metropolitanas do país, Salvador é recordista em trabalho informal. Só este ano, o desemprego na Grande Salvador aumentou mais de 54%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E se falta emprego para o baiano, ele vai em busca de trabalho, daí a justificativa para o recorde em trabalho informal.

Ainda de acordo com a tese citada, vem da tradição africana o conceito de que o trabalho não é o foco principal da vida, de que trabalho e lazer não se opõem. “O que não significa que as pessoas não trabalhem. Ao contrário, trabalham muito, mas sem colocarem o trabalho como objetivo central da existência e cuidando muito das relações que ocorrem fora da esfera do trabalho”, diz a antropóloga autora da pesquisa.

Se a Bahia é tão amada e exaltada, os baianos são pouco compreendidos. E as pessoas, de um modo geral, parecem querer conhecer a parte mais vulgar, inculta e folclórica sobre nós, baianos. Com a devida licença poética do baiano e renomado publicitário Nizan Guanaes, reafirmo: “Baianidade é enfrentar a dura vida de uma maneira que ela pareça menos dura e mais vida”.

Cathy Rodrigues
Jornalista
DRT-BA 4317
cathyannesr@hotmail.com

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